Uma Viagem para as Terras Altas, Um mês no Lab: Abreu e Garcia, Urubici e de volta

POR | ENG

Este ano eu troquei parte do verão europeu pelo inverno na América do Sul. Recentemente viajei para Santa Catarina para dar continuidade a minha pesquisa de doutorado. Para aqueles que ainda não sabem,  sou bioarqueóloga e me especializei em remanescentes humanos cremados e como tal eu passo uma quantidade enorme de tempo observando e pensando sobre ossos queimados (para mais informações ver a nossa publicação sobre ossos queimados). Inevitavelmente, isso significa que eu frequentemente estou no laboratório, mas durante essa viagem eu consegui revisitar alguns locais incríveis nas terras altas.

Escrevi anteriormente um post sobre alguns aspectos do meu projeto de doutorado que envolvem os remanescentes cremados associados aos grupos Jê do Sul, mas em resumo, existem evidências que apontam que a cremação foi uma prática funerária importante para a sociedade Jê. Alguns desses grupos cremavam seus mortos e os depositavam em montículos em complexos anelares. Esses eram monumentos construídos em terra, e estão localizados em topos de morro e colinas ao longo das terras altas. Para o doutorado estou aplicando uma combinação de métodos quem envolvem diferentes áreas como a ciência forense, a química, a bioarqueologia e a arqueologia digital, para analisar os ossos queimados procedentes principalmente do Abreu e Garcia, o qual foi escavado e está sendo estudado como parte do projeto Jê Landscapes.

Por isso, passei várias semanas no GRUPEP, UNISUL analisando ossos recentemente escavados. Observando aspectos como idade, sexo, evidências patológicas, trauma e aspectos tafonômicos. Registrando assim o perfil bioarqueológico desses indivíduos, além de ter utilizado diferentes dispositivos analíticos portáteis para coletar dados primários microscópicos. Aproveitei também a oportunidade para encontrar com a minha supervisora brasileira Professora Sheila Mendonça. Tivemos ótimas conversas e ela compartilhou experiências de pesquisa muito úteis.

In the lab refitting fragments of burned bone at GRUPEP

No Laboratório remontando remanescentes humanos cremados – GRUPEP

Os arqueólogos não ficam apenas no laboratório! Parte do tempo passamos em campo. Nós conseguimos alugar uma Renault Duster em Tubarão para viajar para as terras altas e revistar o sítio Abreu e Garcia (que também é hoje em dia uma vinícola) e a região de Urubici. Incluindo o Avencal e outros locais espetaculares, como o Morro da Igreja e a Serra do Corvo Branco (mais sobre abaixo).

Viagem ao Abreu e Garcia

Partimos cedo para o Abreu e Garcia porque havíamos concordado em participar de um passeio turístico que iria acontecer a tarde na vinícola. A rodovia que leva as terras altas passa no caminho pela incrível Serra do Rio do Rastro. Após seis horas de viajem, chegamos a estrada de chão que fica ao lado da BR-282, atravessamos o Rio Caveiras por uma ponte feita de concreto que corta o rio, e dirigimos pelas pequenas comunidades da região.

Serra do Rio do Rastro

Serra do Rio do Rastro (by Otávio Nogueira licenced CC BY 2.0)

Chegamos a tempo para dar uma palestra improvisada para o grupo sobre o sítio arqueológico e sua importância. Os visitantes ficaram muito entusiasmados com a explicação sobre as práticas funerárias e sobre os nossos resultados do projeto. O sítio fica em um platô e tem uma ampla vista panorâmica. É composto por dois conjuntos anelares com montículos e estão alinhados em um eixo sudeste-noroeste de maneira similar a outros sítios na região. O conjunto anelar mais a leste é o menor dos dois, e tem apenas um montículo. Já o conjunto anelar mais a oeste apresenta tanto um montículo central como um montículo secundário.

Como mencionei, estes sítios são associados com as práticas funerárias dos Jê do sul, e uma série de depósitos cremados secundários foram escavados no Abreu e Garcia entre 2014 e 2015. A paisagem também apresenta qualidades fenomenológicas, por exemplo, a presença desse sítio em um local de elevada altitude proporciona condições para o fenômeno de inversão das nuvens que é particularmente bonito pois nos passa a impressão de estarmos não apenas rodeados como também acima das nuvens.

Explaining the funerary practice of cremation by southern Jê groups at Abreu and Garcia

Explicando sobre a prática funerária da cremação realizada pelos grupos Jê do Sul no Abreu e Garcia

picture2

Fenomêno de inversão das nuvens no  Abreu e Garcia em 2015 (Priscilla Ulguim CC-BY-NC-ND 4.0)

Depois visitamos as vinhas e participamos da degustação de vinhos com o grupo. Leonardo que é especialista em vinhos e também entusiástico da pesquisa arqueológica, gentilmente me presenteou com uma garrafa do novo espumante chamado Geo que foi inspirado no sítio arqueológico.

A sketch of the archaeological site on the label of the sparkling wine

Desenho do sítio arqueológico no rótulo do espumante

Urubici: Avencal and Morro da Igreja

No dia seguinte, visitamos a região de Urubici. Esta é uma área muito bonita, com um valioso património arqueológico e uma florescente indústria de ecoturismo. A primeira parada foi no Avencal I, um sítio arqueológico composto por um paredão de arenito. Onde diferentes painéis com gravuras rupestres apresentam formas geométricas, zoomorfas e antropomorfas gravadas na rocha. Esse sítio foi inicialmente pesquisado na década de 1960 e 1970 e mais recentemente foi estudado por Riris e Corteletti (2015). No momento a equipe do JLSB está realizando escavações no local. O cenário é lindo, na borda de um íngreme, vale arborizado, que leva até uma cascata incrível, que pode ser vista apenas à distância.

Cascata do Avencal Priscilla Ulguim CC BY-NC-ND 4.0

Cascata do Avencal (Priscilla Ulguim CC BY-NC-ND 4.0)

Engravings at Avencal I Priscilla Ulguim CC BY-NC-ND 4.0

Gravuras no Avencal I (Priscilla Ulguim CC BY-NC-ND 4.0)

Coletamos fotos para verificar a capacidade de diferentes dispositivos para image-based modelling usando SFM-MVS. Já havia aplicado este método em diferentes contextos das escavações com remanescentes cremados. E atualmente estou terminando um capítulo sobre a técnica e o registro in-situ de remanescentes humanos que deve ser publicado em um volume dedicado a métodos 3D da Elsevier. Foi ótimo poder também aplicar o método a gravuras rupestres de superfície, e a iluminação estava perfeita para a captura das imagens. Um dos modelos resultantes já está disponível no SketchFab.

A volta pela Serra do Corvo Branco

Antes de retornarmos a Tubarão conseguimos visitar também outros pontos turísticos de Urubici, incluindo o Morro da Igreja, um pico que fica a 1822 metros entre a Serra do Rio do Rastro e a Serra do Corvo Branco. Esse é um dos pontos mais frios do Brasil, e depois de um começo com visibilidade clara, uma forte neblina desceu e tivemos que reduzir a velocidade do carro para “caminhando”. Quando atingimos o limite da estrada para os civis em uma estação de comunicações da Força Aérea, a visibilidade era de entorno de um metro no máximo. Mesmo assim, a vista era notável.

Morro da Igreja in the fog

O Morro da Igreja com neblina (Priscilla Ulguim CC BY-NC-ND 4.0)

Descemos em direção a Urubici, e para a viagem de volta a Tubarão escolhemos um atalho no mapa, que nos levou a atravessar a Serra do Corvo Branco, o que acabou sendo uma miniaventura por si só.

As névoas pelas quais passamos no Morro da Igreja continuaram a descer e à medida que subíamos à Serra do Corvo Branco, a tarde já terminava e a noite começou a cair. Depois de subirmos uma estrada de terra e passarmos pelo gado que estava na estrada, nos deparamos com uma trincheira bastante sinistra de mais ou menos 90m que cortava em duas a face de uma rocha. Essa trincheira com paredes imensas tinha em um lado do acostamento uma placa dizendo pista interrompida que parecia que tinha sido retirada da estrada. Naquele momento ficamos um pouco preocupados sobre o trajeto, mas como havíamos passado por outros carros no caminho decidimos seguir a diante.

Serra do Corvo Branco

Serra do Corvo Branco (by Willian Schneider licenced CC BY-SA 4.0)

Atravessamos a galeria que corta a rocha, e dirigimos até o inicio de uma estrada sinuosa que levava a uma descida vertical, notavelmente íngreme, em direção ao outro lado da serra. Se isso já não fosse impressionante, os próximos 30 km na SC-370 até Grão-Pará foram tensos e com trechos acidentados. Passamos apenas por alguns carros e motociclistas aventureiros. Havia chovido durante toda a noite anterior e a pista estava bastante embarrada, e quando a escuridão caiu mesmo, ficou claro que estávamos em uma situação de direção desafiadora e em superfícies que variaram de ruins a muito ruins. Não é preciso dizer que foi bom voltar para a estrada pavimentada em Rio Braço do Norte, e o carro claro precisou de uma boa limpeza no dia seguinte, mas tudo isso certamente apenas adicionou à nossa aventura.

Muddy Duster

Duster embarrada (Priscilla Ulguim CC BY-NC-ND 4.0)

Agradeço a equipe do GRUPEP e a Professora Deisi por me acomodar e por me receberem sempre tão bem, é um grupo de pesquisa muito engajado e positivo. Agradeço também a Abreu & Garcia, em particular ao Leonardo por sempre receber os membros do nosso projeto, assim como a Universidade de Teesside e a CAPES e CNPQ pelo apoio com a pesquisa. Mais sobre o Paisagens Jê do Sul do Brasil – Je Landscapes of Southern Brazil Project aqui.

This is the Portuguese version of the article. Access the English version.

A trip to the highlands, a month in the lab: to Abreu and Garcia, Urubici and back

This year I swapped part of the European summer for the South American winter, travelling to Santa Catarina, Brazil as part of my doctoral research. For those of you who don’t already know, as a bioarchaeologist who specialises in cremated human remains, I spend an inordinate amount of time looking at and thinking about burned bones (for more see our recent burned bones publication). Inevitably, this means that I’m often in the lab, but during my trip I managed to return to some spectacular sites in the highlands too.

I’ve blogged before about some of my doctoral project on the cremated human remains from southern Jê sites but in summary, there is evidence indicating that cremation was a significant practice for southern Jê groups, who cremated at least some of their dead and deposited them in mound and enclosure complexes. These are earthwork monuments in the highlands which are often set at the tops of hills and plateaus. For my project I apply a mixture of methods from forensic science and chemistry, bioarchaeology and digital archaeology to analyse burned bone from a site called Abreu and Garcia, which we are excavating and studying as part of the Jê Landscapes of Southern Brazil project.

To this end, I spent several weeks at GRUPEP, UNISUL analysing recently excavated bone. I recorded aspects such as age, sex, disease, taphonomic effects and used portable analytical devices to collect microscopic primary data. I also took the opportunity to meet my Brazilian supervisor Professor Sheila Mendonça de Souza. We had some excellent conversations and she shared useful research experiences with me.

In the lab refitting fragments of burned bone at GRUPEP

In the lab refitting fragments of burned bone at GRUPEP

Archaeologists don’t just live in the lab though. We managed to hire a Renault Duster in Tubarão to travel back to the highlands and visit Abreu and Garcia (which also happens to be a vineyard) and the Urubici region. This included Avencal and spectacular locations like Morro da Igreja and Serra do Corvo Branco (more on that later).

Journey to Abreu and Garcia

We set out early for Abreu and Garcia as we had agreed to join a vineyard tour session running in the afternoon. Taking the road up into the highlands we ascended the amazing Serra do Rio do Rastro. After six hours we made our way to the dirt track leading off the BR-282, crossed the Rio Caveiras on a concrete slab bridge, and drove through the small hamlets of the area.

Serra do Rio do Rastro

Serra do Rio do Rastro (by Otávio Nogueira licenced CC BY 2.0)

We arrived just in time to give an impromptu talk to the tour group on the significance of the archaeological site. The visitors were fascinated by the explanation and our project results. The site occupies a plateau with broad panoramic views, comprising a pair of mound and enclosure complexes aligned on a southeast-northwest axis, which is similar to others across the region. The  eastern  complex  is  the  smaller  of  the  two,  with  a single  mound.  The western complex has both a central mound and smaller secondary mound.

As mentioned, these sites are associated with southern Jê funerary practices, and a series of secondary cremated deposits were recovered at Abreu and Garcia in 2014 and 2015. The site also has phenomological qualities, for example the elevated plateau location provides the conditions for cloud inversions which are particularly beautiful.

Explaining the funerary practice of cremation by southern Jê groups at Abreu and Garcia

Explaining the funerary practice of cremation by southern Jê groups at Abreu and Garcia

 

picture2

A cloud inversion at Abreu and Garcia in 2015 (Priscilla Ulguim CC-BY-NC-ND 4.0)

After descending from the plateau we toured the vineyard and tasted wines with the group. Leonardo, a wine expert who is enthusiastic about our research, kindly presented me with a bottle of a new sparkling wine inspired by the archaeological site, named Geo.

A sketch of the archaeological site on the label of the sparkling wine

A sketch of the archaeological site on the label of the sparkling wine

Urubici: Avencal and Morro da Igreja

The following day we visited the Urubici region. This is a beautiful area with a rich archaeological heritage and burgeoning ecotourism industry. We stopped by Avencal I, a cliff site with parietal art engraved in panels around a waterfall. The site itself was first recorded by archaeologists in the 1960s and 1970s and was more recently investigated by Riris and Corteletti in 2015. The JLSB team are currently carrying out excavations there. The setting is beautiful, on the edge of a steep-sided, wooded valley, which leads up to a spectacular cascading waterfall, just visible in the distance.

Cascata do Avencal Priscilla Ulguim CC BY-NC-ND 4.0

Cascata do Avencal (Priscilla Ulguim CC BY-NC-ND 4.0)

 

Engravings at Avencal I Priscilla Ulguim CC BY-NC-ND 4.0

Engravings at Avencal I (Priscilla Ulguim CC BY-NC-ND 4.0)

We collected photos to verify the capability of various devices for image-based modelling using SFM-MVS. I have already applied this method to excavation contexts containing cremated human remains and I am currently finishing a chapter on the technique for recording in-situ human remains which is to be published in a forthcoming volume from Elsevier. It was great to also be able to apply the method to surface engravings, and the lighting was perfect for image capture. One of the resulting models is now available on SketchFab.

Return via Serra do Corvo Branco

Before we returned to Tubarão we managed to see other sights of Urubici, including the Morro da Igreja, a 1822 m peak between the Serra do Rio do Rastro and Serra do Corvo Branco. This is one of the coldest spots in Brazil, and after a clear start, a heavy fog descended and we slowed to a crawling pace. By the time we reached the limit of the road for civilians, at an Air Force communications station, visibility was a metre at best. Nevertheless, it was still remarkable.

Morro da Igreja in the fog

Morro da Igreja in the fog (Priscilla Ulguim CC BY-NC-ND 4.0)

We descended towards Urubici, and for the return trip to Tubarão found a shortcut on the map. It happened to take us via the Serra do Corvo Branco, which turned out to be a mini-adventure in itself. As they say, Brazil is not for beginners.

The mists that we had driven through on the Morro da Igreja continued to descend as we climbed to the Serra do Corvo Branco, already late in the afternoon and with dusk falling. After we scaled the dirt track and navigated past cattle in the road we were greeted with the rather ominous trench cut 90 m into the rock face. This trench had immense walls and an old sign which appeared to have been removed, with the words Pista Interrompida. At that moment the route became a little worrying, but as we had already passed other cars on the way up we decided to push on.

Serra do Corvo Branco

Serra do Corvo Branco (by Willian Schneider licenced CC BY-SA 4.0)

Emerging from the rock-cut passage we made our way down the winding road which navigates the awesomely steep vertical descent of the mountain face on the other side. If this was impressive, the next 30 km on the SC-370 to Grão-Pará were boneshaking and bumpy. We passed only a few cars and some adventurous quad bikers in the dark. Given it had rained all of the previous night the track was muddy, and as darkness fell, it was clear we were in for a challenging drive over surfaces that ranged from bad to very bad. Needless to say, it was good to get back onto a paved road at Rio Braço do Norte and the car needed a deep clean the next day, but this certainly added to the adventure.

Muddy Duster

Muddy Duster (Priscilla Ulguim CC BY-NC-ND 4.0)

My thanks go to the team at GRUPEP and Professor Deisi for hosting me once again so kindly, they always receive me very warmly and are a very positive and engaged research group. I also thank Abreu Garcia, particularly Leonardo for hosting our project, as well as Teesside University and CAPES for support with the research. You can find out more about the Jê Landscapes of Southern Brazil project here.