O Congresso da Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB) realizou a XVIII edição na cidade de Goiânia em setembro 2015. Arqueologia para quem? foi o tema do evento. O objetivo era convidar os participantes a refletir sobre a relação entre a arqueologia e os públicos, e a discutir sobre caminhos mais eficazes na troca do conhecimento arqueológico com a sociedade, além de debater sobre o papel social do arqueólogo e o fim social da arqueologia. Uma questão muito pertinente sempre, mas em especial ao refletirmos sobre como nos comunicamos e publicamos a pesquisa acadêmica, especialmente em tempos de grande interação nas redes sociais como nos últimos 10 anos e de rápidas mudanças e incorporações tecnológicas na arqueologia.
Quando penso sobre como poderíamos melhorar a forma com que nos comunicamos com a sociedade e interessados na temática da arqueologia sempre me vem à cabeça a linguagem e os jargões utilizados na academia. Como arqueóloga acredito que poderíamos nos comunicar de maneira mais acessível, falando sobre a pesquisa de modo compreensível e atraente a qualquer pessoa.
Também em busca de responder a essa reflexão encontrei no blog um caminho acessível para trocar e compartilhar o que venho aprendendo na minha vida acadêmica. Nos últimos seis meses passei a escrever blog posts não apenas para as universidades e projetos em que estou envolvida, mas também para o meu pequeno projeto – Ossos, Enterros e Café Preto (Bones, Burials and Black coffee) um blog pessoal que tem a pretensão de ser bilíngue (português, porque é a minha língua materna e inglês por ser uma língua franca nos dias atuais) onde escrevo sobre tópicos que me interessam e sobre a minha pesquisa de maneira mais informal, com o objetivo de tornar o conteúdo acessível a quem tiver interesse.
E o post de hoje é sobre a apresentação que fiz em 2015 no congresso da SAB no simpósio – Arqueologia das Práticas Rituais – organizado pelas professoras Cristiana Barreto e Daniela Klökler. O simpósio foi muito produtivo. As apresentações foram de alta qualidade e discutiram sobre uma série de tópicos que incluíram aspectos das práticas funerárias, objetos rituais, festins, entre outros em sítios arqueológicos Sambaquis, na Amazônia, no Amapá e Jê do Sul. Além de tópicos que falaram sobre sentidos e memórias. Foi também uma oportunidade muito boa para rever amigos e para conhecer pessoalmente um grupo de pesquisadores cujo o trabalho eu gosto muito e acompanho já há alguns anos.
O Fogo e a Morte: a cremação como prática funerária ritual foi o tópico da minha apresentação, onde discuti sobre a ritualização das práticas funerárias desenvolvidas nas terras altas do sul do Brasil, a partir de 1000 anos depois do presente até o período de contato. O artigo completo do simpósio foi publicado há poucos dias e esta disponível aqui. O trabalho compõe o volume 14, N. 1 de 2016 da revista Habitus que conta com outras apresentações do simpósio.
Para esse post escolhi três partes relevantes do artigo. Acredito que esses tópicos ajudam a demonstrar a importância da cremação enquanto prática funerária para as sociedades ameríndias e Jê meridional.
1. Os remanescentes humanos cremados são importantes fontes de informação para a interpretação do passado e requerem uma metodologia adequada para o seu estudo.
No passado foram vistos como não significativos ou como uma prática funerária inferior em relação a inumação e aos remanescentes não queimados. Isso porque muitos acreditam que o fogo destrói os ossos. Uma visão bastante disseminada na arqueologia e de modo geral. É bastante frequente arqueólogos comentarem que não é possível inferir muito sobre aquele “monte de cinzas”. Isso não é verdade. Como disse Hertz, 1960, p. 46 “Longe de destruir o corpo, o fogo transforma o corpo”. Com o avanço das técnicas forenses, químicas e bioarqueológicas principalmente nos últimos cinco anos, muito se pode inferir sobre os remanescentes cremados. Se você quiser saber mais sobre essas técnicas e métodos aqui esta um capítulo que escrevemos recentemente (THOMPSON; ULGUIM, 2016). O fogo é um agente cultural e tafonômico e as alterações que ele induz nos ossos podem ser “lidas” facilmente por um especialista na temática dos ossos queimados. Contudo, por ser um tema difícil devido a natureza desafiadora dos ossos queimados, e pelo fato de não serem considerados por curadores e museólogos “atraentes” é muito comum que sejam negligenciados pelos arqueólogos, preteridos pelos bioarqueólogos e desconhecidos pela sociedade. Essa parte do artigo buscou discutir como a combinação de diferentes abordagens e métodos aliados a teoria da ritualização podem demonstrar a importância dessa prática e desses remanescentes.
A negligência dos ossos cremados é um grande problema na arqueologia e recentemente vem sendo repensada. Um bom exemplo dessa negligência que muitos conhecem ou já ouviram falar é Stonehenge. Um famoso sítio arqueológico que fica na Inglaterra. Esse sítio data do início do terceiro milênio antes de cristo. Foi um cemitério de cremações onde indivíduos foram depositados no interior de um círculo feito de pedras verticais conhecidas como pedras azuis (bluestones). Stonehenge teria sido fundado como um cemitério cerimonial onde membros de uma família distinta, provavelmente do País de Gales, teriam sido enterrados após sua cremação, e durante um período de aproximadamente cinco séculos. Para os pesquisadores, ao longo do tempo Stonehenge passou a ser um local de referência e vínculo com os ancestrais. Seus remanescentes humanos cremados escavados entre 1920 e 1926 não foram aceitos por quase nenhum museu na Inglaterra e foram reenterrados no sítio sem terem sido analisados em sacos de areia no ano de 1935 no Aubrey Hole 7, até que em 2008 foram reescavados e coletados para análise pelo Stonehenge Riverside Project.
Com esse exemplo buscamos aqui demonstrar que a cremação é um rito funerário complexo com múltiplos propósitos e que não constitui um ato final, e que não excluí o enterramento dos indivíduos.
“A cremação não é apenas uma, mas muitas práticas funerárias”(QUINN; KUIJT; COONEY, 2014, p. 5)
2. Há uma profundidade temporal significativa na prática ritualizada da cremação nas terras altas do Sul do Brasil onde repetidamente depósitos cremados foram depositados em aterros com anéis funerários.
A revisão da literatura aponta que a cremação estaria presente desde o século XI até o início do século XX, e claramente fez parte de uma importante prática ritualizada. Tal prática não parece apoiar a hipótese que propõe que o padrão de sepultamento entre os Jê meridional teria passado por uma transição de sepultamentos coletivos em grutas para enterros individuais em montículos. As evidências encontradas nos sítios arqueológicos não suportam essa hipótese, e pesquisas recentes apontam a presença não apenas de depósitos individuais, mas também múltiplos realizados sucessivamente com passar do tempo nas mesmas feições funerárias.
3. A abordagem etnobioarqueológica (Etnobioarqueologia) foi um importante aspecto desse trabalho.
Nesta parte investigo os relatos etnográficos e ethnohistóricos dos mitos/cosmologia dos Laklanõ/Xokleng, que não foram exploradas de forma tão pormenorizada como as do Kaingang ao discutirmos esses monumentos. Por isso escrevi especificamente sobre algumas cerimônias como o Waikômáng e o Ãgyïn. Pois acredito ser mais relevante para a discussão os temas em comum desses grupos do que quem cremaria os mortos. Esses seriam os três pontos que escolhi para falar neste post.
Ao esclarecermos alguns dos equívocos construídos ao longo do tempo sobre a cremação e a prática funerária dos Jê do Sul passamos também a melhor compreender o fenômeno da cremação nas sociedades ameríndias. Outros pontos como a percepção de uma boa morte, semelhanças e diferenças no registro arqueológico funerário, aspectos específicos das análises bioarqueológicas e dos remanescentes cremados e sua relação com a paisagem também foram discutidas no artigo. Espero que o artigo e o blog possam auxiliar na reconsideração dos rótulos atribuídos aos remanescentes cremados e a seu potencial informativo.
Bibliografia
Parker Pearson, M. and the Stonehenge Riverside Project 2012. Stonehenge: Exploring the Greatest Stone Age Mystery. Simon & Schuster: London.
Thompson, T. J. U. and Ulguim, P. 2016. Burned Human Remains. In Blau, S. Ubelaker, D. H. (eds.) Handbook of Forensic Anthropology and Archaeology. Second Edition. Left Coast Press: Walnut Creek.
Ulguim, P. F. 2016. O fogo e a morte: a cremação como prática funerária ritual. Habitus Goiânia 14(1):107-130. DOI: 10.18224/hab.v14.1.2016.107-130
Quinn, C. P. Kuijt, I. Cooney, G. 2014. Introduction: Contextualizing Cremations. In Kujit, I. Quinn, C. P. Cooney, G. (eds). Transformation by Fire: The Archaeology of Cremation in Cultural Context. University of Arizona Press: Tucson, pp. 3-22.
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